Todo dia levantava cedo para chegar pontualmente ao início da aula de matemática. Helena nunca foi nota 10 na matéria, mas se esforçava para conseguir a média proposta pelo colégio. Não gostava de perder e os cálculos a desafiavam.
Tomou aquele desaforo como objetivo de vida. Tinha que vencer os números. As páginas de seu caderno já demonstravam a fúria. Os rabiscos profundos da primeira página marcavam todas as seguintes. A borracha não durava muito. Errava tantas vezes que o consumo do material era por semana, enquanto que a maioria dos colegas passava o ano inteiro com a mesma borracha.
Quando chegava na sala, todos já sabiam o que ela queria, a primeira cadeira da fila. Aquela área já tinha sido demarcada em luta. Brigou feio com uma menina de cabelos encaracolados, metida a boazinha, com um gênio do diabo e tomou suspensão por quatro dias. A briga a fez perder a explicação do assunto mais complicado: logaritmos.
Demorou tempo até recuperar a lógica do cálculo, ficou horrorizada com a dificuldade, mas conseguiu pegar o jeito depois que um colega ofereceu ajuda em troca de dinheiro. Pagou caro, mas recuperou o assunto, era o que mais queria.
Desafio maior foi com funções. Questionou-se que função tinha a função? Ficou sem saber. Não usaria aquilo depois, afinal estudava para ser advogada e não engenheira. Conformou-se. Estudou assim mesmo, sem explicação. Tirou 10 na prova, enfrentou os cálculos como um lutador no último tempo do ringue e alcançou o prêmio desejado.
A professora percebia o talento da garota para matemática, queria que ela participasse das olimpíadas anuais da matéria, mas Helena não olhava aquilo com prazer, o assunto era sempre um desafio e não um jogo, que se perde e fica tudo bem. Se não vencesse ficaria arrasada, depressiva, poderia até se matar, quem sabe.
Ninguém sabia do sentimento de Helena. A matemática não era apenas um assunto qualquer, era questão de honra. Se topasse participar das olimpíadas teria que vencer a qualquer custo e para dizer a verdade, estava muito mais acostumada com os exercícios práticos de sala de aula do que raciocínio lógico arrebatador.
Pensou em negar, estava decidida até chegar na sala e ver a lista de alunos inscritos. A garota de cabelos encaracolados ia participar e ela não? Isso não poderia ficar assim, era humilhação. Decidiu participar. O lápis era arma na mão e foi assim até o final.
No primeiro dia de prova, estava toda de preto, com uma faixa na cabeça, estilo Rambo. Ninguém entendeu nada, mas Helena sabia que era dia de luta e tinha que usar todos os artefatos para conseguir o objetivo: vencer.
Seu olhar intimidava. Nenhum aluno ousava lhe encarar, ela estava pronta para a disputa. A prova começou.
Sentiu dificuldade, o logaritmo a fazia suar. Sofreu durante as 4 horas de luta, quase foi nocauteada, mas resolveu tudo, não sobrou uma linha sem ser resolvida.
Segundo dia, faixa preta na cabeça, óculos escuros e lápis na mão. Resolveu tudo, mas uma questão quase a fez rasgar o papel da prova. O local estava tão sensível que ou fazia certo ou não teria outra chance. Errou. Uma fenda já começava a abrir, desistiu.
Chorou feito criança, ninguém nunca tinha visto Helena assim. Derrotada. A faixa caiu da cabeça. Havia perdido a luta. Voltou para casa com a mesma tristeza, nada a fazia mudar, nem mesmo o tempo que passou no ônibus vislumbrando a imagem poética da cidade onde morava.
Ainda segurava o lápis. Lembrou da questão e tentou resolver novamente. Passou a tarde toda com o rosto grudado no papel, não queria água nem comida, só matemática. Tentou todas as possibilidades possíveis e nada de conseguir. Pesquisou na internet algo semelhante. Não achou nada. Chegou a um ponto que não conseguia mais pensar. Desistiu, novamente desistiu.
Foram tantas desistências em um só dia que não suportou. Pegou o lápis e perfurou cada dedinho como forma de punição. Doeu muito, mas se sentiu melhor. Tinha que ser castigada, era cristã e o catolicismo pregava punições aos pecadores, ela tinha que sofrer. Sofreu. Sofreu bastante.
No dia seguinte, acordou disposta, feliz, com um sentimento estranho. Lembrou da questão, foi direto ao papel, não conseguiu. Entrou no site das olimpíadas e viu uma nota sobre o segundo dia de prova. Não acreditou. A questão tinha sido anulada, havia um erro e não era seu.
Olhou para as próprias mãos cheias de pontinhos. Sorriu. Sorriu desesperadamente, queria se perfurar até não agüentar, tinha fechado a prova. O primeiro lugar era seu.Foi correndo ao colégio ver o mural de resultados. Não acreditou. Empate. Ela e a menina de cabelos encaracolados.
Seu olhar era raiva, puro ódio. Todos sabiam da rivalidade no colégio. Não era possível que duas inimigas ficassem em primeiro lugar, não queria dividir a vitória, ou era sua ou não era, não podia ser de duas.
Pegou a folha do mural e rasgou. Fez picadinho do resultado e lembrou novamente da questão. Pegou o caderno, sentou-se. Calculou, calculou. Achou o resultado. Não estava errado, o pódio era seu.
Levou o papel até a professora que achou engraçados os rabiscos e não entendeu a preocupação da garota, afinal tinha se saído bem. Deu dois tapinhas em suas costas e saiu apressada para resolver outro assunto qualquer.
Helena de ódio nem sei o que sentia mais. Estava insatisfeita, matemática era obsessão. Vencer era desejo, objetivo, solução.
Encontrou a menina de cabelos encaracolados, brigou até não poder mais. Novamente foi encaminhada a direção, resultado: expulsa do colégio.
Ficou feliz, afinal não eram mais duas. Era única, como a história dos corpos que não ocupam o mesmo lugar. Saiu de cabeça erguida, sabia que era melhor. Conquistou aquilo que desejava, a libertação dos números. Adeus, matemática nunca mais.