O jantar estava marcado para as 20h. Recebi algumas ligações de amigos convidando-me para um reencontro, nada que me fizesse sair de casa ás pressas, mas também não queria me atrasar.
Olhei-me no espelho, um rosto sem graça sorria para mim. Dei cores aquela face com os kits de beleza femininos, ficou melhor, talvez disfarçasse os meus reais sentimentos. Coloquei alguns itens na bolsa, caso a máscara desmanchasse e segui em direção ao lugar.
Lá estavam todos eles, o João, Pedro, a Raquel e Elisa sentados no centro do restaurante mais sofisticado da cidade. Já haviam pedido bebidas, o cheiro de vinho exalava no ambiente, e não pude deixar de notar o rosto rosado e tímido de Raquel. Abracei a todos, mas ela estava divina, mudou bastante desde a última vez em que nos vimos.
Todos se sentaram à mesa e começamos a resgatar assuntos do passado. Risos, risos e mais risos. Sentiam-me como se meu corpo estivesse ali parado, intacto sem vontade nenhuma de fazer movimentos, já minha alma estava no restaurante a vagar.
Estava segurando uma taça de vinho. Percebi um grupo na mesa ao lado, composto por três mulheres e um homem. O rapaz era loiro, de olhos azuis e falava de um modo estranho. Concentrei-me para ouvir o que dizia, mas não entendi. Acho que era estrangeiro. Eles pareciam contentes como a chegada de uma boa notícia. Senti inveja. Sorri.
Raquel reparou na minha posição, continuava com a taça de vinho no mesmo lugar e perguntou se eu estava me sentindo bem. Lembro que ouvi a voz distante, e percebi que minha alma estava quase atravessando a avenida. Como num estalar de dedos, eu chamei a sua atenção, ela voltou ao lugar de origem e respondi que estava bem.
A conversa do meu grupo foi parar nos tempos da escola. Novamente, o assunto não agradou e olhei para o lado esquerdo da mesa. Duas mulheres elegantes, de gestos comportados conversavam timidamente. Talvez fosse um casal. Tentei ouvir o som daqueles lábios, mas nada chegava aos meus ouvidos. Continuei olhando e uma delas apertou a mão da outra. Gostei da imagem e acabei pressionando a taça de vinho que segurava, ela quebrou em minhas mãos.
Raquel levantou assustada e veio me ajudar. Eu estava sangrando e sorrindo. Todos ficaram preocupados com o meu estado, o garçom me deu um lenço, o casal olhava para mim, ainda segurando a mão uma da outra.
Acredito que a minha alma ainda estava a vagar. Com gestos lentos, levantei da mesa quase que carregada e fui em direção ao banheiro lavar o corte. Os pingos vermelhos coloriram o chão do restaurante. Ficou bonito, me senti feliz.
Raquel me apertava contra o seu corpo, preocupada e eu gostando da situação. Quando a água jorrou sobre a ferida senti um calor estranho que me sufocou. O vermelho estava quase estancado, mas eu gostava do vermelho. Raquel estava de vermelho.
O sangue parou e aquela falta de ânimo novamente se apoderou de mim. Percebi que o meu rosto estava pálido e as cores já não sobressaiam mais. Raquel continuou me ajudando, mas nem seu vestido tinha mais o mesmo tom.
Voltamos para a mesa, o casal já tinha ido embora, o estrangeiro não escondia a felicidade e meus amigos estavam assustados. A imagem não era bonita, faltava vermelho.
Lembrei que tinha colocado o batom na bolsa, imediatamente peguei. Contornei os meus lábios, os de Raquel, uma nova taça de vinho, a mesa, o chão.
Meus amigos impediram mais riscos, o restaurante inteiro olhava a minha obra de arte, deveriam agradecer, agora sim tudo tinha cor de paixão, o clima estava perfeito para os casais apaixonados.
Tentei beijar Raquel, fui empurrada. O estrangeiro sorriu novamente, mas agora tinha explicação. O gerente do restaurante queria me retirar do local, eu pintei sua roupa branca de vermelho, não com o batom, mas com o sangue que tinha voltado a sair da minha mão.
Não entendia porque as pessoas não compreendiam a arte, a cor, o vermelho a vida. Chorei angustiada e peguei um táxi para casa, nem me despedi de Raquel, talvez nunca mais a veja.
No meu apartamento, vi cores, admirei a vida, minha alma não precisava vagar, eu estava em mim e me diverti assim mesmo, sozinha.