A mulher que descrevo hoje era novíssima em folha, pele rosada e esticadinha da juventude. Seu corpo era de estatura mediana, não magro totalmente, em algumas partes poder-se-ia ver volumosos grupos de tecido adiposo. Mais isto, deixemos de lado. O fato era que Virginia sempre se comparava a sombra. Queria identificar as partes, tinha mania de parar em qualquer lugar e ficar observando o contorno que a luz projetava do seu corpo. Se estava um pouco inclinada, fazia o máximo para consertar. Uma mania boba, que ninguém lhe ousava reclamar, afinal era brava como a mãe, que morreu em briga por um copo de cachaça.
Toda noite era o mesmo ritual, deixar o abajur aceso e ficar defronte o objeto analisando a sombra, até sentir-se exausta e dormir. Numa segunda-feira de agosto aconteceu diferente. Virginia tinha acabado de sair do banho quando tentou acender o abajur e este não deu sinal. Falta de energia não era, pois a luminária do som estava ligada. Abaixou-se para verificar a tomada, e nada, estava tudo corretamente conectado. O que havia acontecido?
O frescor do banho já havia evaporado e gotas de suor escorriam sobre seu rosto. Era raiva. Tinha que alimentar a rotina, não poderia deixar de lado o que fazia todas as noites assim, como quem abandona tudo e não liga para o que vai acontecer.
Deu duas pancadas de leve no objeto, mas nenhum feixe de luz surgiu Já eram 23h, não podia ligar para o eletricista, era tarde demais. Então, decidiu riscar um fósforo, acender uma vela, qualquer coisa que projetasse a sombra da forma que queria. Conseguiu. Sentiu-se aliviada, ficou defronte a vela e nada. Cadê a sombra?
Procurou em todos os cantos, até debaixo da cama e nada. Esta noite não tinha sombra. Chegou a pensar que talvez o abajur não tivesse ligado para lhe esconder a verdade, e a vela, persona non grata como era decidiu mostrar-lhe o que realmente tinha acontecido. Besteira. Já estava começando a delirar.
Procurou um espelho, viu que estava tudo no mesmo lugar, morte não era. Beliscou-se intensamente, sentiu dor, morte não era. A voz estava como sempre aguda de irritar. Pensou em chamar o vizinho, relatar o caso, mas não... poderia interná-la por loucura. Ninguém ligava mesmo para sombra, só ela, quem ia reparar nisso. Tomou dois remédios “tarja preta” e enfim conseguiu dormir.
No dia seguinte, ainda assustada pensou se a história não seria um sonho, abriu a janela para que os raios de sol entrassem e constatou ausência de sombra. Perplexa, vestiu-se rápido, tomou dois goles de café e saiu.
No centro da cidade, as pessoas caminhavam com pressa e só Virgínia tinha reparado na ausência das sombras. Ficou feliz por não ser a única, mas triste porque perdeu a mania predileta de procurar a projeção, achar e analisar.
Apavorada, com sintomas de abstinência, agarrava qualquer um que passasse em sua frente para comunicar o caso.
- Cadê a sua sombra? Sumiu!! Você não percebe?
E as pessoas começaram a ter medo, não do caso, mas de Virgínia. Um policial observou a jovem e logo veio questionar o que estava acontecendo. Ela, sem medo, apontou para o chão e apenas disse: Cadê a sombra?
O policial sorriu. Deveria ser louca, pensou. Mas reparar mesmo se tinha sombra ou não, isto ele não fez. Apenas autuou a mulher e levou-a ao centro médico mais próximo.
Virginia não estava louca, realmente as sombras sumiram, mas ninguém prestava atenção a sua fala. O dia corriqueiro, a pressa, o trabalho e o olhar sobre o estranho espantavam qualquer ato de comunhão.
Foi avaliada. O médico nem olhou para o seu rosto, com o lápis na mão , prestando atenção no papel apenas questionou seus hábitos e o que sentia, anotou qualquer coisa, e recomendou apenas repouso.
Sabendo que aquilo tudo era desnecessário, retornou para casa e tentou ligar o abajur. Nada. Ele ainda não acendia. Talvez tivesse queimado a lâmpada, pensou.
Foi até a casa do vizinho e calma falou:
- Bom dia, Senhor Eduardo, como vai? Estou com um pequeno problema no meu abajur, poderia me ajudar?
- Virginia, estou bem, desculpe mas a comida está no fogo, e não posso ajudá-la agora. Talvez, mais tarde, ok?
Nem respondeu, saiu agoniada e reparou que o velho também não tinha sombra.
Questionou a si mesma sobre o caso e por que as pessoas não entendiam o que falava. Louca não era, mas ficar sem sombra, isto sim era um problema.
Tentou, tentou de tudo para fazer as pessoas analisarem o caso, mas ninguém a ouvia. Então, escreveu uma carta e correu em direção ao prédio mais alto. Atirou-se lá de cima.
Corpo estendido no chão e papel grudado no peito, o conteúdo apenas dizia: “a sombra sumiu, estamos sem sombra”!